ATLAS DOS POLIQUETAS DA BAÍA DE PARANAGUÁ (PARANÁ - BR)

O que é o atlas online de poliquetas da Baía de Paranaguá?

O uso de organismos como indicadores dos vários graus de qualidade ambiental se baseia no pressuposto de que um ambiente “natural” é caracterizado por condições de equilíbrio dinâmico, sustentando presumidamente uma maior diversidade de animais e plantas. Se uma perturbação ocorre neste ambiente, as espécies mais sensíveis podem ser afetadas, com a redução das densidades populacionais e a manifestação de efeitos sub-letais. Se a intensidade da perturbação aumenta, há uma tendência para a diminuição do número de espécies até sua virtual extinção. Neste sentido, espécies sensíveis podem ser consideradas indicadores biológicos da qualidade ambiental, por sua ausência. Por outro lado, espécies tolerantes ou oportunistas tendem a se beneficiar da instabilidade ambiental acarretada por estas perturbações, aumentando suas densidades e monopolizando os recursos disponíveis. Neste caso, estas espécies passam a ser indicadoras devido à sua presença. Estes são os principais pressupostos de algumas das atuais rotinas de monitoramento ambiental, baseadas no conceito de indicadores biológicos por ausência ou presença.
A avaliação de impactos e o monitoramento da qualidade ambiental com base nos organismos bênticos dependem não apenas do conhecimento de sua ocorrência, distribuição e tolerância, mas também de sua variabilidade ao longo do tempo. É necessário conhecer a variabilidade natural das populações bênticas para que esta possa ser distinguida das variações introduzidas por atividades humanas. Na ausência deste tipo de conhecimento, programas de monitoramento ambiental ou de avaliação de impactos podem ser totalmente inviabilizados. Neste contexto, o bentos estuarino caracteriza-se por elevada variabilidade ao longo do espaço e do tempo, sendo em geral pobre em espécies. No entanto, estas podem apresentar populações muito abundantes, na medida em que as áreas estuarinas estão sujeitas a marcados gradientes nas mais diversas escalas espaciais e temporais. Nestes ambientes, zonas internas tipicamente abrigadas, de baixa energia ambiental, alternam-se com áreas externas de alta energia, expostas à ação de ondas e correntes. A distribuição de sedimentos de fundo, um dos principais fatores estruturadores das associações bênticas, acompanha este gradiente de energia ambiental. Variações temporais de fatores físico-químicos são também significativas, incluindo desde as variações diárias, causadas pelas marés, até variações sazonais, causadas pelo regime de chuvas e entrada de água doce, e mesmo interanuais, causadas por oscilações climáticas de maior amplitude. Esta elevada variabilidade ambiental pode por sua vez condicionar uma elevada variabilidade bêntica, dificultando o trabalho de avaliação da qualidade ambiental, principalmente em média e longa escala.
Atividades de monitoramento, envolvendo desde as análises da qualidade ambiental até a avaliação de impactos, não podem prescindir de um conhecimento seguro e confiável das espécies afetadas. A literatura brasileira já oferece uma série de guias ou catálogos para identificação dos invertebrados de suas regiões marinhas costeiras. No entanto, as dificuldades para a correta identificação de espécies animais por técnicos ou cientistas sem treinamento taxonômico específico continuam particularmente evidentes, já que esta fauna é muito diversificada e, até certo ponto, demanda conhecimento especializado para seu reconhecimento e identificação.
Neste contexto, as informações taxonômicas existentes são pouco acessíveis a pessoal sem formação taxonômica estrita, que continua dependente do apoio de especialistas para identificação de material zoológico. Os próprios taxonomistas constituem uma classe pouco numerosa e sobrecarregada de atividades, incapaz de atender esta demanda de forma rápida e sustentada. As conseqüências práticas deste estado de coisas são evidentes, com a maioria dos trabalhos de avaliação de impactos e monitoramento ambiental carecendo de boa fundamentação científica e deixando de cumprir satisfatoriamente seus objetivos técnico-científicos e legais.
Entre os invertebrados marinhos, os anelídeos poliquetas se destacam pela sua extraordinária diversidade e por dominarem numericamente as associações de fundo, particularmente nas regiões costeiras, como baías e estuários. São, juntamente com os crustáceos e moluscos, um dos grupos mais diversificados e abundantes da macrofauna. Como muitos outros grupos bênticos, os poliquetas são particularmente apropriados para a análise de eventos de perturbação ambiental, por várias razões:
- levam um modo de vida séssil ou relativamente sedentário e portanto refletem as condições ambientais pré-impactos, pelo fato de não fugirem ou serem facilmente levados ou trazidos por correntes, como acontece com organismos nectônicos ou planctônicos;
- têm ciclos de vida em geral mais longos do que organismos planctônicos;
- apresentam um espectro variado de tolerância a alterações ambientais.
Embora a utilização dos poliquetas como indicadores de condições ambientais só tenha se intensificado nos últimos 30 anos, já em 1916, o alemão Wilhelmi atribuiu a Capitella capitata em ambientes marinhos, o mesmo papel desempenhado pelo oligoqueta Tubifex em ambientes de água doce. Infelizmente, este trabalho não teve maiores desdobramentos. Só algumas décadas mais tarde, Donald Reish (1950) começou sistematicamente a utilizar espécies de poliquetas para a análise de fenômenos de poluição, tanto em situações de campo como de laboratório. A partir daí, uma vasta literatura científica tem mostrado padrões de resposta relativamente recorrentes destes animais a perturbações ambientais (Reish & Gerlinger, 1997). Em áreas fortemente perturbadas, apenas umas poucas espécies de poliquetas, como Capitella spp e algumas espécies de Spionidae tendem a predominar. Capitella, em particular, só ocorre em densidades elevadas em zonas perturbadas ou poluídas. Isto se deve a uma elevada capacidade de recolonizar áreas azóicas rapidamente após a defaunação inicial. É interessante observar que Capitella não é particularmente mais tolerante a condições de hipoxia do que muitas outras espécies.
Estas razões fundamentam o uso dos poliquetas como ferramentas biológicas para a aferição da qualidade ambiental ou para o acompanhamento de episódios de poluição, sejam eles fruto de derrames de óleo, despejo de efluentes domésticos e industriais ou dragagens dos fundos marinhos, cada vez mais freqüentes nas regiões estuarinas urbanizadas ou com instalações portuárias. Para que estas atividades sejam viáveis, estes organismos precisam ser corretamente identificados e seus padrões de variabilidade espacial e temporal determinados.
Apesar de razoavelmente estudado em teses, guias, catálogos e publicações formais (Glasby et al., 2000; Rouse & Pleijel, 2001), o grupo dos poliquetas continua de difícil acesso para ecólogos, oceanógrafos, técnicos ambientais ou pessoal sem treinamento taxonômico específico. Já existe uma relevante literatura de caráter taxonômico no Brasil, incluindo guias e chaves ilustrados (Amaral & Nonato, 1996). Por outro lado, ainda não contamos com trabalhos que permitam aos não especialistas a identificação segura das espécies mais conspícuas e abundantes, a partir de características diagnósticas visualizadas a olho nu ou com pequeno aumento, como a coloração ou traços mais evidentes da morfologia externa, a natureza dos tubos, os locais de ocorrência, etc. Da mesma forma, não conhecemos com precisão as áreas de distribuição mesmo daquelas populações de espécies mais abundantes ou constantes. Apenas recentemente programas de levantamento da biodiversidade, como o BIOTA-FAPESP, passaram a se preocupar com o georreferenciamento das amostras biológicas coletadas em ambientes marinhos.
Este atlas online pretende lidar com este problema, lançando mão de recursos baixo custo, amplamente disponíveis e de uso muito difundido na área da tecnologia da informação, para garantir a técnicos ambientais, pesquisadores, estudantes de graduação e pós-graduação o acesso a informações técnico-científicas até então restritas ou de difícil utilização prática.
Este pretende ser um guia de referência extensivo, sob a forma de um atlas ou catálogo eletrônico dos poliquetas de fundos estuarinos da costa sul do Brasil, com ênfase em sedimentos não consolidados. O guia tem no momento (março de 2010) uma vertente zoológica, funcionando como um primeiro manual “visual“ para reconhecimento de espécies de poliquetas. Nos próximos meses, assumirá uma vertente oceanográfica, com o mapeamento das interações organismo-sedimento e o georeferenciamento das espécies. O Atlas será disponibilizado como página na Web, o que permitirá acesso rápido aos usuários potenciais, a custo praticamente nulo, além de possibilitar permanente atualização. O material não deverá ser veiculado sob forma impressa, por causa dos custos editorais elevados e pela menor acessibilidade ao público em geral. O Atlas conterá descrições diagnósticas das espécies mais conspícuas e abundantes nos fundos estuarinos da Baía de Paranaguá, mas deverá ser ampliado no futuro para outras regiões da costa sul do Brasil.
Esta iniciativa contou com o generoso apoio do CNPq, através de bolsa de produtividade e Grant de pesquisa (Processo 303009/2007-1) a Paulo da Cunha Lana (lana@ufpr.br), desde 2005. É também o resultado do trabalho dedicado e por vezes entusiasmado de vários alunos de graduação e pós-graduação que passaram pelo Laboratório de Bentos do Centro de Estudos do Mar nos últimos 10 anos.
Este trabalho pretende se transformar em um projeto coletivo, aberto à comunidade científica brasileira. Neste sentido, está aberto a todas as críticas, sugestões e adições que os colegas poliquetólogos do Brasil e do exterior queiram repassar ao responsável (lana@ufpr.br).

Para saber mais:
Amaral, A. C. Z. & Nonato, E. F. 1996. Annelida Polychaeta: características, glossários e chaves para famílias e gêneros da costa brasileira. Editora da UNICAMP, Campinas, 124 pp.

Fauchald, K. 1977. The polychaete worms. Definitions and keys to the orders, families and genera. Natural History Museum of Los Angeles County, Science Series 28: 1-188.

Glasby, C. J., Hutchings, P. A., Fauchald, K.,Paxton, H., Rouse, G. W., Russel, C. W. & Wilson, R. S. 2000. Class Polychaeta. Pp.1-297 in Beesley, P. L., Ross, G. J. B. & Glasby, C. J. (eds) Polychaetes & Allies: The Southern Synthesis. Fauna of Australia. . Vol. 4a Polychaeta, Myzostomida, Pogonophora, Echiura, Sipuncula. CSIRO Plublishing, Melbourne, 465 pp.

Reish, D. J. & Gerlinger, T. V. 1997. A review of the toxicological studies with polychaetous annelids. in Reish, D. & Qian, Pei-Yuan (eds). Proceedings of the Fifth International Polychaete Conference, China. Bulletin of Marine Science, 60(2): 584-607.

Rouse, G. W. & Pleijel, P. 2001. Polychaetes. Oxford University Press, London, 354pp.